quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A Democracia de Cesário da Silva

Cesário da Silva, homem distinto, de mãos robustas, olhar sereno e sorriso bem mais doce que o mel. Os óculos, gastos pelas longas horas de leitura, assentes num rosto de pele enrugada onde ainda resistia um escasso bigode esbranquiçado, davam-lhe um certo ar intelectual. Os traços bem delinedos e os olhos castanhos amendoados não deixavam dúvidas... Em jovem, fora certamente um belo homem!...


Calcorreara, durante anos, longos quilómetros de caminhos e ruelas, ladeados por vegetação agreste, de feira em feira, para vendar as tamancas talhadas pelas suas próprias mãos. O peso que fora carregando e as intempéries que enfrentara tinham-lhe entorpecido os ossos, mas nunca lhe haviam diminuído a ânsia inata de alimentar a alma através da leitura, onde, sofregamente, buscava a sabedoria.


Cesário da Silva completara a 4ª classe com distinção. Fora um senhor na sua aldeia. Na "venda" ou na taberna, era habitual agruparem-se algumas pessoas para o ouvirem ler as poucas notícais que iam chegando a Porto Antigo (Cinfães). Lia-as e explicava-as para que todos pudessem acompanhar o que se ia passando no país e no mundo. Cesário da Silva lia e sabia... sabia muito!


Tinha cerca de doze anos quando lhe perguntei o que era a democracia. Lembro-me, entre outras, das palavras liberdade, igualdade e justiça. Com aquele idade não consegui estruturar a abrangência de todos esses conceitos e muito menos o que lhes estava subjacente.


Mas, falo de Cesário da Silva, meu avô, porque foi dele que ouvi a mais singular definição de democracia, "Democracia é poder ler sem precisar de me esconder". Não sei se, naquele momento, percebi, claramente, o verdadeiro significado da afirmação. Acredito que só quem viveu na ditadura, privado dos direitos essenciais e de bem estar social, conseguirá entender a verdadeira génese da democracia.


Para mim, a cultura democrática (como eu a entendo), de cidadania ativa, reivindicativa dos seus direitos, está esbatida numa cultura autoritária e de submissão que não tem deixado desenvolver o acesso aos direitos por parte daqueles que mais necessitam deles. A coabitação dos valores democráticos com fortes grupos de pressão que privatizam o Estado e transformam em pseudo direitos os previlégios obtidos através de fortes influências sociais e políticas, adulteram o verdadeiro sentido da democracia. Poderá em democracia haver discrepância entre a declaração formal dos direitos cívicos, políticos, económicos, sociais e culturais e a sua efetiva aplicação? Supostamente, não.


Então, será a democracia uma utopia? Como dizia o romancista alemão Robert Musil "Uma utopia é uma possibilidade que pode efetivar-se no momento em que forem removidas as circunstâncias provisórias que obstam à sua realização". Ora, no nosso sistema democrático, a ânsia desenfreada pelo poder, a suspeição política, as debilidades no sistema de justiça, o vazia ideológico, entre muitos outros que pululam por aí, continuam a ser opositores à democracia, portanto, continuam a obstar à sua realização...


O próprio Thomas Moore, a propósito da sua "Utopia", afirmou "Desejo-o mais do que espero". Eu também desejo uma Democracia efetiva. Porém, por agora, vou fazendo jus à definição de Cesário da Silva, "Democracia é poder ler sem precisar de me esconder". Pelo menos isso, para já, é um direito adquirido.


Efetivamente, é na leitura que reside a minha liberdade!...

1 comentário:

  1. Bem vinda! Gostei do texto e do conceito de democracia que é, no mínimo, original. Poder ler sem esconder é, seguramente, um sinal da qualidade da democracia. Mas não deveremos esperar mais de uma democracia?

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